Existe um combinado entre a equipe do CAPSII para postagens no blog que é de não colocar textos muito longos que dificultem a leitura e a deixem desinteressante. Porém, este texto merece entrar na lista de exceções por que, como você verá, ele é muito interessante e faz parte do dia-a-dia dos serviços de Saúde Mental.
Confira:
Permissão
para ser INfeliz
A
psicóloga Rita de Cássia de Araújo Almeida conta como a demanda
por felicidade vem crescendo nos serviços de saúde mental da rede
pública
ELIANE
BRUM
Eliane
Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40
prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um
romance - Uma
Duas (LeYa)
- e de três livros de reportagem: Coluna
Prestes – O Avesso da Lenda (Artes
e Ofícios), A
Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O
Olho da Rua (Globo).
E codiretora de dois documentários: Uma
História Severina e Gretchen
Filme Estrada.
elianebrum@uol.com.br@brumelianebru
Há
alguns anos me pergunto se o “direito à felicidade”, que se
tornou uma crença partilhada tanto por religiosos quanto por ateus
na nossa época, tem sido causa de considerável sofrimento. Se você
acredita que tem direito à felicidade, de preferência todo o tempo,
ao sentir frustração, tristeza, angústia, decepção, medo e
ansiedade, só pode olhar para esses sentimentos como se fossem uma
anomalia. Ou seja: eles não lhe pertencem, estão onde não deveriam
estar, precisam ser combatidos e eliminados. O que sempre pertenceu à
condição humana passa a ser uma doença – e como doença deve ser
tratado, em geral com medicamentos. Deixamos de interrogar os porquês
e passamos a calar algo que, ao ser visto como patologia, deve ser
“curado”, porque não faz parte de nós. É um tanto fascinante
os caminhos pelos quais a felicidade vai deixando o plano das
aspirações abstratas, da letra dos poetas, para ser tratada em
consultório médico. E, ainda mais recentemente, como objeto do
Direito e da Lei, inclusive com proposta de emenda constitucional.
Quem acompanha esta coluna sabe que a felicidade tem
sido um tema assíduo. Acredito que poucos fenômenos são tão
reveladores sobre a forma como olhamos para a condição humana em
nosso tempo como o “direito à felicidade”. Sem esquecer que este
tema está relacionado a outros dois fenômenos atuais: a
medicalização da vida e a judicialização dos sentimentos. Ou,
dito de outro modo: tratar o que é do humano como patologia e dar
aos juízes a arbitragem dos afetos.
É
importante – sempre é – ressaltar que obviamente existem doenças
mentais e situações nas quais o uso de medicamentos é necessário
e benéfico, desde que com acompanhamento rigoroso. O que se
questiona aqui são os casos – infelizmente frequentes – de
leviandade nos diagnósticos psiquiátricos e o consequente abuso no
uso de medicamentos, que tem criado uma multidão de dependentes de
drogas legais, cujas consequências só serão conhecidas nas
próximas décadas. É íntima a relação deste fenômeno com a
crença da felicidade que assinala nosso tempo.
Desta
vez, convidei a psicóloga e psicanalista Rita de Cássia de Araújo
Almeida para falar sobre um recorte muito significativo: a crescente
demanda por felicidade no SUS. No texto de final de ano em seu blog,
ela abordava a “ditadura da felicidade” do ponto de vista de sua
experiência como trabalhadora da rede pública de saúde mental.
Rita, 43 anos, é formada em psicologia pela Universidade Federal de
Juiz de Fora, com mestrado em educação. Há 10 anos ela atua como
psicóloga em CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), serviços
estratégicos na área da saúde mental. Atualmente, Rita trabalha no
CAPS Leste, de Juiz de Fora, e coordena o CAPS Casa Aberta, no
município de Lima Duarte, ambos no interior de Minas Gerais.
Nesta
entrevista, ela toca em pontos importantes: o aumento do sofrimento
causado pelo imperativo da felicidade; a crescente demanda por um
diagnóstico de transtorno mental, com a consequente receita de
medicamentos; a transformação de momentos como luto, desilusão
amorosa e rebeldia juvenil em doença; a dificuldade cada vez maior
de compreender que sentimentos como tristeza, angústia, frustração,
ansiedade e medo dizem algo importante sobre a vida, que deve ser
escutado e não calado. Assim como a insônia e a falta de apetite
nem sempre significam doença, mas um aviso de que é preciso
reformular algo no cotidiano.
Nos
últimos anos, Rita e seus colegas perceberam que tinham uma nova
função ao acolher as pessoas que os procuravam na rede pública:
autorizá-las a serem infelizes. Isso deve dizer algo sobre todos nós
– e sobre nosso mundo. Você
atua na rede pública de saúde, escutando pessoas que relatam dores
psíquicas. Em seu texto de despedida de 2012, no seu blog, você
escreveu sobre a “ditadura da felicidade”, apontando a diferença
de queixa das pessoas nos serviços de saúde mental nesta última
década. Afirmou que hoje o pedido é por “felicidade” – ou,
dito de outro modo, teria se tornado impossível para as pessoas
sentirem-se “infelizes” ou conviver com alguém “infeliz”.
Como é isso?
Rita
de Cássia de Araújo Almeida – Atuo
na saúde pública, em serviços do tipo CAPS (saúde mental) há 15
anos, sendo 10 deles como psicóloga. E, sim, tenho percebido uma
mudança na maneira como as pessoas entendem a felicidade. Num
passado não muito distante a felicidade era um bem a ser
conquistado, quase uma utopia. Hoje, as pessoas se sentem na
obrigação de serem felizes. A psicanálise entende a nossa época
como a “era do direito ao gozo”. Ou seja: hoje, todos têm o
direito de gozar plenamente, sem restrições. Nesse caso, a
felicidade deixou de ser uma contingência, um evento, e passou a ser
um direito que supostamente deveria ser garantido. Vivemos sob a
ditadura da felicidade, e, por isso, grande parte das pessoas tem
dificuldade de passar por momentos de infelicidade, de frustração e
de perdas com naturalidade, entendendo isso como parte da
existência.
O
que você está dizendo é que o imperativo da felicidade, a
obrigação de ser feliz, está provocando sofrimento?
Rita
– Percebo
que as pessoas, além de sofrer pelo motivo que as levou a procurar
ajuda, sofrem ainda mais pela angústia de ter que se livrar daquele
sofrimento rapidamente, a qualquer custo. Não compreendem que aquilo
que sentem pode ter um significado e um motivo que precisam ser
escutados, pela própria pessoa. Também sentem muita necessidade de
dar um nome para o que sentem. Querem logo receber um diagnóstico.
Tenho
alguns exemplos que, imagino, não fogem muito à realidade de outros
colegas trabalhadores da área. Um deles é quando alguém perde um
ente querido e a própria pessoa – ou alguém da família, ou até
mesmo outro profissional de saúde – solicita atendimento
especializado pelo fato de ele ou ela estar sofrendo ou chorando
muito. Enterram o pai num dia e querem estar prontos para ir ao
cinema no fim de semana seguinte. Temos também adolescentes
encaminhadas à psiquiatria por estarem em conflito com o namorado,
assim como crianças indicadas por apresentarem problemas de
comportamento e dificuldades de aprendizagem.
Para
os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da
atenção à saúde do SUS, precisamos abrir um parêntese para que
entendam o exemplo que vou dar a seguir. O sistema funciona, ou pelo
menos deveria funcionar, em rede. A atenção primária – o posto
de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família –
é a extremidade da rede mais próxima do usuário. Portanto, é a
primeira que ele procura quando apresenta qualquer problema. O
desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das
especialidades médicas, mas intervir na pessoa como um todo, tendo
como diretriz a promoção e a prevenção da saúde. Entretanto, a
atenção primária pode, em casos mais específicos, nos quais a
intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar
outros parceiros da rede que possam oferecer suporte. Os CAPS,
modalidade de serviço que trabalho, oferecem uma escuta
especializada no campo da saúde mental.
Certa vez, recebemos
em acolhimento uma mulher, encaminhada por um profissional da atenção
primária do nosso território de atuação. Segundo ele, esta mulher
apresentava um quadro de insônia e delírio persecutório. Numa
escuta mais cuidadosa, soubemos que ela, na verdade, estava insone
por medo do marido, que ameaçava jogar água fervente em seu ouvido
enquanto ela dormia. Portanto, uma ameaça real – e não um delírio
de perseguição. Quando ela me disse que precisava de uma consulta
com um psiquiatra para que ele lhe desse um remédio pra dormir, tive
de perguntar a ela: “Um remédio? Para quê? Para a senhora acordar
com o ouvido queimado?”. Parece óbvio, mas ela não se dava conta
de que não dormir, no seu caso, era um sinal de saúde, era uma
forma de se proteger (do marido violento) – e não uma doença.
Tivemos de autorizá-la a estar com insônia e, obviamente,
auxiliá-la a tomar outras providências mais adequadas à situação.
“Estamos
nos tornando uma geração de humanos que teme sua própria
humanidade”
O
que essa queixa de “infelicidade” diz da nossa época? O que ela
oculta? O que revela?
Rita
– Na
verdade, o que causa infelicidade às pessoas não mudou muito.
Sofremos, em geral, pelo mesmo motivo apontado por Freud há quase
100 anos. Sofremos, na imensa maioria das vezes, do mal-estar
resultante das nossas relações com os outros. Entretanto, percebo
que mudou muito a forma como as pessoas lidam com esse mal-estar, com
sua infelicidade cotidiana. Num passado não muito distante o
profissional da saúde mental era, em geral, procurado para ajudar a
pessoa a compreender seus mal-estares, decifrá-los. Hoje, um número
cada vez mais crescente de pessoas nos procura com um único
objetivo: se livrar dos mal-estares. Não querem saber nada sobre
seus sofrimentos ou sobre sua infelicidade, não desejam decifrá-los
ou interrogá-los. Querem apenas que o sofrimento e a infelicidade
silenciem, e ainda demandam de nós uma resposta rápida, eficaz e,
especialmente, que não lhe exija muito esforço. Estamos nos
tornando uma geração de humanos que temem sua própria humanidade.
Vivemos numa sociedade que pretende negar e rejeitar toda espécie de
tragicidade que a condição humana carrega consigo.O
que perdemos quando paramos de nos interrogar sobre nosso mal-estar
com o mundo? Ou sobre nossos conflitos, nossas angústias e
ansiedades?
Rita
– Para
a psicanálise, nossos mal-estares são oportunidades que temos para
reconduzir e aperfeiçoar nosso processo de subjetivação, de
construção de nós mesmos, processo este que nunca cessa. São
esses mal-estares que nos fazem repensar nossos valores, objetivos,
nosso modo de ser e nossas relações. As lagartas, para se
transformarem em borboletas, precisam antes passar pela fase do
casulo. Se quisermos aproveitar esta metáfora para entender o
processo de subjetivação humano, diríamos que somos capazes de
viver esse processo de transformação um sem número de vezes. De
lagarta para borboleta, de borboleta para lagarta, e assim
sucessivamente. Estas transformações, por sua vez, só acontecem
quando questionamos nosso modo de ser e de estar no mundo. Quando
paramos de nos interrogar, perdemos a oportunidade de passar por
essas transformações, ficando paralisados, fixados em uma só
condição: ou lagarta, ou borboleta. E é muito melhor quando
podemos aproveitar todas as possibilidades de estar nesse mundo.
Por
que você acredita que paramos de nos interrogar? O que aconteceu? O
que mudou?
Rita
– A
pressa talvez seja o sintoma mais evidente da nossa sociedade atual.
Zygmunt Bauman (sociólogo polonês, autor de Modernidade
Líquida, O
Mal-Estar da Pós-Modernidade e Vida
para Consumo,
entre outros) descreve muito bem nosso tempo. Ele diz que vivemos sob
a pressão de constantes mudanças, o que favorece uma cultura do
esquecimento, em vez de uma cultura do aprendizado e da
lembrança.
Como eu disse, as queixas são as mesmas de 10 anos
atrás, mas hoje é cada vez mais comum que as pessoas procurem
soluções fáceis e rápidas. As pessoas não têm paciência e
disposição para passar por tratamentos longos, que exijam esforço
e tempo. Outro dia, eu ouvi algo mais ou menos assim, num
atendimento: “Olha aqui, minha filha, eu não vim aqui pra ficar de
conversinha com você. Eu tenho depressão e preciso de um remédio,
porque esse que eu estou tomando não está valendo nada”.
O
que você diz para uma pessoa que acabou de perder alguém que amava,
mas não quer viver esse luto? Ou acredita que não deveria estar
sentindo essa dor, ou até que é injusto sentir essa dor?
Rita
– Percebo
mais como se as pessoas não se sentissem no direito de sofrer, não
se sentissem autorizadas a serem infelizes, sabe? Então, é
interessante que muitas vezes tenhamos de intervir de modo a
autorizá-las a sofrer. Precisamos dizer a elas: “Olha, você acaba
de perder sua mãe, e, se você a amava, é normal que você sofra,
que não durma bem, que não queira se alimentar. Estranho seria se
você quisesse ir ao cinema logo depois do enterro. Então, vá para
casa, chore, sofra, viva seu luto, compartilhe-o com as pessoas que
você ama e volte aqui na semana que vem para conversarmos mais”.
Alguns voltarão algumas vezes e agradecerão depois por você não
ter se aproveitado de sua fragilidade momentânea para rotulá-lo com
um diagnóstico psiquiátrico. Alguns não voltarão porque buscarão
outras soluções e modos de lidar com a perda. Uma minoria voltará
muitas vezes, porque aquela perda foi realmente insuportável e
quebrou a pessoa de tal maneira que a ajuda profissional será
fundamental para que ela consiga seguir caminhando. E alguns outros
não voltarão, porque irão procurar outro profissional que atenda o
seu pedido, que lhe dê uma anestesia, uma droga qualquer que faça
calar seu mal-estar. É claro que, lamentavelmente, encontrarão quem
faça isso.
O
tratamento, no caso, seria “autorizar” a pessoa a ser “infeliz”?
Ou a sentir frustração, tristeza, desânimo, ansiedade, saudade,
medo etc... ?
Rita
– Sim.
Para trabalharmos de forma ética, não temos de dizer apenas o que a
pessoa quer ouvir, mas, sobretudo, o que ela precisa ouvir. Sendo
assim, temos que, muitas vezes, desconstruir sua demanda inicial,
autorizando-a a sofrer, a ficar infeliz, a perder o sono e o apetite,
quando isso faz parte de um contexto normal de perda, luto, fracasso,
desentendimento familiar. Até para que a pessoa possa, a partir daí,
fazer perguntas sobre sua vida, suas escolhas, seu modo de ser... No
caso daquela mulher que não dormia por causa do marido que a
ameaçava, por exemplo, não medicá-la, não acabar com sua insônia,
foi fundamental para que ela pudesse questionar seu casamento, a
posição dela naquela relação, e possibilitar que ela pudesse
fazer novas escolhas e buscar outros caminhos.
Você
poderia dar outros exemplos concretos da experiência no
consultório?
Rita
– Dias
atrás recebemos em acolhimento um homem de meia idade queixando-se
de dificuldade para dormir e nervosismo. Ele queria a receita de um
remédio que já tinha usado uma vez e que, segundo ele, foi muito
bom. Ou seja, ele apresentou uma queixa e, em seguida, a solução,
tudo em poucos minutos. Tentando desacelerar sua pressa, como deve
ser a nossa conduta nesses casos, tratei de fazer as perguntas que
ele mesmo deveria estar se fazendo naquele momento. Como estava a sua
vida, a sua relação com o trabalho, com o lazer, com a família, o
que o deixava nervoso, o que pensava nas noites insones...
Respondendo a estas perguntas, ele confessou que, depois da morte da
esposa, há alguns anos, decidiu mergulhar intensivamente no
trabalho, “para não pensar”. Ele trabalha no trânsito, um local
por si só muito estressante, cerca de 14 horas por dia, incluindo
feriados e finais de semana, sem horário certo para comer ou dormir.
Não tem lazer, mora sozinho e não conseguiu, desde a morte da
esposa, se relacionar afetivamente. No decorrer da nossa conversa,
ele conseguiu perceber que, com a vida que estava vivendo, era
impossível que não estivesse insone e estressado. No final da
consulta, estava decidido a reduzir seu tempo de trabalho, a definir
horários regulares para comer e dormir, a voltar a fazer uma
atividade física e a programar seu lazer. Pedi que ele nos
telefonasse em um mês para dar notícias sobre as mudanças, se elas
tinham produzido o efeito esperado. Minha experiência me diz que,
neste caso, conseguimos produzir o efeito desejado: auxiliar a pessoa
a sair de uma posição de paralisia e impotência diante de seus
sintomas.
Como
é o método de trabalho nos CAPS? Há uma preocupação de que as
pessoas não sejam medicadas sem necessidade, quando, em muitos
casos, como você conta, a demanda é por um diagnóstico de
transtorno mental, com a consequente receita de pílulas? Ou, dito de
outra forma, como evitar que os CAPS virem fábricas de doentes
mentais e dependentes de drogas legais?
Rita
– Como
eu disse, o sistema público de saúde funciona em rede. Os CAPS
compõem o trançado da rede que oferece uma escuta especializada no
campo da saúde mental. Sendo assim, apesar de, em alguns casos,
recebermos demanda espontânea, o mais comum é recebermos
encaminhamentos dos demais parceiros da rede, em especial da atenção
primária. Ao chegar ao CAPS, a pessoa passará por um dispositivo
chamado “acolhimento”. Este é um dispositivo que deve ser
utilizado por todos os CAPS, uma diretriz para o que chamamos de
“porta de entrada” do serviço. Regular esta porta de entrada é
fundamental para que os CAPS, como você disse, não se transformem
em fábricas de doentes mentais. O acolhimento, como o próprio nome
diz, é o momento em que a pessoa será acolhida em sua demanda, será
escutada com cuidado, sem pressa, em uma ou mais entrevistas, por um
ou mais profissionais do serviço, para que se possa construir uma
estratégia de intervenção. E a intervenção pode ser, inclusive,
desconstruir a demanda inicial pelo diagnóstico e pela medicação,
para incluir outras demandas, nas quais a pessoa pode atuar como
protagonista de sua própria história – e não como um mero
usuário de drogas legais, para usar suas palavras.
O
“direito à felicidade” tem sobrecarregado o sistema público de
saúde? Qual é a sua experiência? É a maioria dos casos na área
de saúde mental?
Rita
– O
Ministério da Saúde, através da Coordenação de Saúde Mental,
tem passado orientações no sentido de evitar a psiquiatrização e
medicalização das situações cotidianas, obviamente por entender
que esse tipo de conduta é, na atualidade, uma realidade na saúde
pública brasileira. A Linha Guia de Atenção em Saúde Mental de
Minas Gerais – uma publicação da Secretaria Estadual de Saúde
que define as diretrizes da política de saúde do estado – alerta
para o problema do uso inadequado dos chamados benzodiazepínicos,
comumente indicados como se fossem uma fórmula mágica para
solucionar problemas pessoais e sociofamiliares. Os benzodiazepínicos
– classe de medicamentos com propriedades ansiolíticas,
hipnóticas, anticonvulsivantes e miorrelaxantes – estão entre os
medicamentos mais prescritos no mundo e inúmeras vezes de maneira
inadequada. Geralmente, segundo essa Linha Guia, são prescritos
quando o médico se sente impotente diante das queixas de seus
pacientes. Hoje, o uso abusivo de benzodiazepínicos pela população
tornou-se um grave problema de saúde pública.
No
nosso cotidiano de trabalho nos CAPS, especialmente no trabalho em
parceria com a atenção primária, onde podemos fazer um diagnóstico
do que leva as pessoas a procurarem tratamento em saúde mental,
temos percebido um aumento na demanda por psiquiatrização e
medicalização dos problemas cotidianos. O bom é que, na saúde
pública, temos mais liberdade de desconstruir esse tipo de demanda:
com a pessoa que nos procura, com a sua família e até com o colega
profissional de saúde.
“Usamos
o medicamento de forma correta e ética quando ele serve para a
pessoa falar – e não para fazê-la calar”
O
“direito à felicidade”, na sua opinião, tem levado então a uma
maior medicação das pessoas?
Rita
– Sim,
sem dúvida. A maioria das pessoas que nos procura quer ser medicada
– diagnosticada e medicada. Querem um nome para a sua doença e uma
pílula milagrosa que resolva seu mal-estar. E, quando dizemos a elas
que o remédio não vai resolver seus conflitos familiares, não vai
solucionar seus problemas financeiros, não vai dissolver uma culpa
ou uma perda, assustam-se e ficam pensativas. Acho que as pessoas
realmente acreditam que há um remédio que solucionará isso para
elas. E, na verdade, elas não acreditam nisso por acaso. Elas
acreditam porque há um discurso, extremamente forte e presente em
nossa sociedade, alimentado principalmente pela indústria
farmacêutica, que sustenta a ideia de que é possível encontrar na
prateleira da farmácia um remédio para qualquer mal-estar que nos
incomode. Este é um excelente exemplo, na saúde, de quando a oferta
gera a demanda. Existe demanda por felicidade em pílula porque o
multimilionário mercado farmacêutico oferta esse tipo de solução.
Isso
não quer dizer que os medicamentos psiquiátricos nunca devam ser
usados, que são um mal em si. A crítica que se faz é à medicação
excessiva e sem norteamento ético. O medicamento precisa servir para
que a pessoa fale, para que ela compareça – e não para que ela se
cale, se transforme numa morta-viva, num zumbi. Às vezes, a doença
psíquica chega ao ponto de impedir a pessoa de ir e vir, de se
comunicar, paralisando-a completamente, impedindo-a de fazer laços
ou apagando a sua subjetividade. Nestes casos, o medicamento pode e
deve ser usado, mas somente com o intuito de fazer com que a pessoa
se movimente, fale, compareça. Resumindo: no campo da saúde mental
sabemos que estamos usando o medicamento de forma correta e ética
quando ele está servindo para fazer a pessoa falar – e não para
fazê-la calar.
Você
acredita que existe diferença na demanda nos serviços de saúde
mental da rede pública e na demanda nos consultórios privados, com
respeito à felicidade e à forma como as pessoas se relacionam com
dores como frustração, angústia, tristeza, medo etc?
Rita
– Eu
sou uma entusiasta defensora do nosso sistema público de saúde –
o SUS. Na minha opinião, deveríamos ir às ruas levantando
bandeiras para exigir financiamento adequado e melhores condições
para os seus trabalhadores. E, dentre os inúmeros motivos que me
fazem defender esta proposta, vou dizer apenas um que considero
fundamental. O melhor sistema de saúde privado que poderíamos
conceber não é capaz de fazer uma coisa que só o SUS pode fazer:
intervir sem estar submetido à lei de mercado ou à lógica do
consumo. Não podemos negar que a medicalização dos nossos
problemas cotidianos faz muito bem ao desenvolvimento da indústria
farmacêutica – e só o SUS é capaz de manter uma distância
segura dessa influência.
Além
disso, no SUS, podemos com mais tranquilidade desconstruir a demanda
por uma especialidade ou por uma intervenção específica, pelo
próprio sistema de rede. Na rede privada ou conveniada, qualquer um
de nós pode, a qualquer momento, marcar uma consulta com qualquer
especialista, mesmo que não haja nenhuma indicação para tal. Só
isso já aumenta muito a probabilidade de uma pessoa ser
diagnosticada e medicada sem o cuidado necessário – algumas vezes
por uma falta de cuidado ético do profissional, em outras vezes pela
própria pressão do usuário em ser atendido no seu pedido.
Especialmente porque, no setor privado, o usuário é, na verdade, um
cliente. E sabemos que, na sociedade de consumo, o cliente sempre tem
razão.
De
certo modo, você percebe na sua prática clínica cotidiana que tudo
o que é do humano virou patologia. De novo, o que isso revela? E o
que isso causa?
Rita
- Sim,
hoje, tudo o que nos torna humanos é passível de ser diagnosticado
e medicado. Acho que isso revela que nós nos tornamos uma sociedade
extremante “careta”. Careta no sentido de ser capaz de
interpretar todo o tipo de transgressão ou de atitude fora do padrão
como um provável transtorno mental a ser diagnosticado e tratado. Ou
seja: normatizado. Tenho 43 anos e três filhos, dois deles
adolescentes de 17 e 15 anos. Quando eu tinha a idade deles, uma
atitude qualquer que eu cometesse, fora das normas e das regras, era
tratada como uma transgressão, apenas. E tínhamos certo orgulho da
punição que recebíamos, já que ela era como um troféu e também
uma espécie de acerto de contas, que nos autorizava a transgredir
novamente. Já meus filhos não têm a mesma sorte que eu tive.
Precisarão de muito cuidado para escolher seu modo de transgredir,
pois, ao invés de ser entendido como um ato de rebeldia ou
travessura adolescentes, pode ser interpretado através de um
diagnóstico psiquiátrico, condenando-os assim a um tratamento
psicológico ou medicamentoso. Acho isso uma grande caretice.
Vivi
recentemente uma situação no mínimo inusitada, que retrata bem o
que estou dizendo. Uma mãe nos procurou no CAPS com seu filho
adolescente de 15 anos. Demandava uma avaliação psiquiátrica para
ele. Nos CAPS em que trabalho, temos como protocolo que o acolhimento
seja feito por outro profissional, que não o médico, exatamente
para esvaziar essa demanda imediata pelo medicamento. Eu, então, fui
fazer o atendimento com mãe e filho. Segundo o relato da mãe na
consulta, o rapaz estava repetidamente se envolvendo em atos
delinquentes. No último deles foi punido pela Justiça e condenado a
uma pena alternativa, pelo fato de ser menor de idade. A mãe queria
que descobríssemos qual transtorno mental seu filho tinha.
Transtorno este que, supostamente, estaria fazendo com que ele
tivesse aquelas atitudes. Em seguida, assisti a um bate-boca
inusitado entre mãe e filho. Ela tentando me provar que ele tinha
uma doença mental ou que estava sob o efeito de alguma droga,
enquanto ele afirmava que seu comportamento nada tinha de patológico,
já que ele tinha plena consciência de seus atos, estava no seu
juízo perfeito e não cometeu os delitos sob o efeito de drogas.
Enquanto a mãe queria que eu rotulasse o filho com algum
diagnóstico, o filho tentava dizer a ela que infringiu a lei
conscientemente e pretendia pagar pelo seu ato ilícito. Naquele
momento, fiquei com muita pena daquela mãe tentando desesperadamente
transformar o filho num doente mental, mas, ao mesmo tempo, também
fiquei com pena daquele menino que queria apenas ser tratado como um
rebelde, um fora da lei – e não como um doente. Vivemos tempos
estranhos...E
por que vivemos tempos estranhos?
Rita
– O
estranhamento é exatamente a sensação que temos quando percebemos
uma mudança que ainda não compreendemos totalmente. Acho muito
estranho que alguém prefira ter um filho portador de transtorno
mental a ter um filho que transgrediu a lei. Acho estranho que todas
as nuances do comportamento humano sejam passíveis de serem nomeadas
e medicalizadas. Ou seja: passíveis de normatização.
“Estamos
produzindo uma geração de jovens que se quebram ao menor arranhão”
Como
a questão do “direito à felicidade” se manifesta na relação
entre pais e filhos? E qual é o papel do consumo nessa relação?
Rita
– Você
já trouxe alguns textos com
esse tema aqui na sua coluna. Hoje, toda criança já nasce gozando
do direito pleno e irrestrito à felicidade. E assim sendo, as
crianças não precisam mais lutar por ela ou desejá-la. Se a
felicidade é um direito, cabe a elas tão somente se queixarem ou
cobrarem quando esse direito não está sendo atendido. E os pais têm
sido os mais cobrados para fazer valer esse direito. Os filhos dessa
geração exigem que seus pais os façam felizes, que não os
frustrem e, o que é pior, vemos muitos pais completamente perdidos,
acreditando que serão mesmo capazes de ofertar felicidade plena aos
filhos, ou que poderão atender ao imperativo de nunca os frustrarem.
Por isso os pais de hoje têm tanta dificuldade em dizer “não”.
Vou
dar um exemplo extremo desse medo dos pais. Há cerca de quatro anos,
fui procurada por uma mãe em meu consultório particular, que queria
atendimento para o filho. Sua queixa era a de que este filho, de 9
anos, voltara a fazer “cocô na calça”. Fiz algumas entrevistas
iniciais com a mãe, para avaliar melhor a demanda, antes de pedir
que ela trouxesse o menino. A mãe me explicou que o filho sujava a
calça com frequência, especialmente em momentos nos quais a família
estava fora de casa, em alguma atividade social – um aniversário,
um passeio, um jantar. Ela contou que já estavam evitando sair de
casa por causa do comportamento do filho. Perguntei, então, se ela
já tinha questionado o filho sobre o motivo que o levava àquele
comportamento. Essa mãe me respondeu: “Claro que não!”.
Confessou-me que ela e o marido jamais falavam do assunto na presença
do menino. Segundo ela, para não traumatizá-lo. Explicou que ela e
o marido, nesses eventos sociais, ficavam sempre atentos e, diante de
qualquer “cheiro estranho”, pegavam o filho e saíam
imediatamente do local. Sem falar nada com ele sobre o episódio,
levavam o menino para casa, lhe davam banho e trocavam sua roupa. Em
seguida, continuavam agindo como se nada tivesse acontecido. Este é
um caso extremo, mas vemos muitas outras atitudes, não tão incomuns
como esta, sendo repetidas pelos pais de hoje, tudo para poupar o
filho de uma possível frustração.
Temos
tratado nossos filhos como se fossem peças de louça muito
delicadas. Ao condená-los à felicidade ampla, geral e irrestrita,
estamos produzindo uma geração de jovens extremamente frágeis e
imaturos, que se quebram ao menor arranhão.
Obviamente
a sociedade de consumo se aproveita muito disso. Temos filhos
querelantes, que sabem como ninguém exigir seu “lugar ao sol”.
Ou, adaptando o termo ao discurso capitalista, temos filhos que sabem
como ninguém exigir a mercadoria que lhes convêm na prateleira. E
temos pais que temem dizer “não”, pois não querem frustrar ou
traumatizar seus filhos. Junta-se a isso uma sociedade que mede o
grau de felicidade das pessoas pelo tanto de coisas, bens ou serviços
que elas são capazes de consumir e chegamos a uma combinação
perfeita. Que mais a sociedade de consumo pode querer?O
“direito à felicidade” tem permeado as relações na sociedade
brasileira – assim como no Ocidente, em geral. No Brasil,
inclusive, tem sido tema tanto do judiciário quanto do legislativo,
até com proposta de emenda constitucional. Por mais que as intenções
sejam boas e aparentemente são, a felicidade como direito
fundamental é no mínimo questionável. Que tipo de consequências
da suposta garantia do “direito à felicidade” já testemunhamos
e quais ainda podemos esperar?
Rita
– Penso
que a felicidade deveria ser um tema tratado apenas pelos poetas,
músicos, escritores. Trazer o tema da felicidade para o campo da
razão, para o campo jurídico ou científico, é um equívoco. A
felicidade é um tema subjetivo. Sempre que tentamos circunscrevê-la
com algum discurso burocrático, tendemos a formatá-la num padrão
ideal, num modelo que sirva para todos. E não existe um ideal de
felicidade, cada um de nós irá percebê-la ao seu modo.
Além
das consequências que já citamos aqui, existe uma outra, tão
empobrecedora para a nossa subjetividade quanto a medicalização do
sofrimento cotidiano, que é a judicialização da vida. O que também
já está acontecendo com frequência.
Nossos
pais não nos amaram o suficiente? Fim de um relacionamento amoroso?
Traição de um amigo? Dificuldades com o chefe? Diante de alguns
destes problemas, mesmo os mais corriqueiros, bastará que entremos
na Justiça para cobrar uma reparação, nem que seja financeira. Ou
seja, quando a felicidade for uma espécie de direito constitucional,
poderemos também resolver nossas infelicidades nos tribunais. E
assim seremos finalmente considerados incapazes de resolver por nós
mesmos nossas frustrações e dificuldades de relacionamento.
O
que você entende por felicidade?
Rita
– Como
disse, prefiro deixar este tema para o campo das artes. Não há como
entender a felicidade com a razão, não é possível mensurá-la ou
pensá-la como um modelo que valha para todos, todo o tempo. Se
estamos numa relação atribulada, felicidade pode ser um momento de
solidão. Se estamos solitários, felicidade pode ser receber um
telefonema. Guimarães Rosa, na pele de Riobaldo, diria assim: “No
sertão, até enterro simples é festa”.
A
sensação de felicidade é uma experiência singular, única para
cada pessoa. Acredito que o desafio atual seja pensar um projeto
coletivo capaz de trazer esse tema para a pauta, mas não para o
campo da lei, da burocracia, da simples garantia de direitos, ou da
ciência – mas, quem sabe, para o campo da ética. No campo da
ética, as pessoas podem entender que elas também têm o direito de
ficarem infelizes, que infelicidade não é doença, mas parte da
condição humana – e que, sem ela, perdemos metade da nossa
humanidade.Qual
é a importância da infelicidade?
Rita
– Acredito
que, em tempos de ditadura da felicidade, respeitar e autorizar essa
infelicidade nossa de cada dia é uma forma de resistência, uma
espécie de libertação.
Fonte: Revista Época
Equipe CAPSII